Possíveis continentes – sobre Arco vivo, de Juan Parada
Daniela Vicentini, 2015
Todas as coisas que vejo e faço ganham sentido num espaço da mente em que reina a mesma calma que existe aqui, a mesma penumbra, o mesmo silêncio percorrido pelo farfalhar das folhas. No momento em que me concentro para refletir, sempre me encontro neste jardim neste mesmo horário, em sua augusta presença, apesar de prosseguir sem um instante de pausa a subir um rio verde de crocodilos… cada vez que fechamos os olhos no meio do alvoroço ou da multidão, podemos nos refugiar aqui vestidos com quimonos de seda para avaliar aquilo que estamos vivendo, fazer as contas, contemplar a distância. –
Ítalo Calvino
As cidades invisíveis, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 95.
Pingo (2012), dos primeiros trabalhos de Juan Parada, mostra um paralelepípedo de cerâmica que recebe em apenas uma de suas faces maiores uma ação diferente. Desenhando no espaço uma gota que se deposita sobre ela, e esculpindo a gota como se esta fosse uma imagem congelada, o artista torna água a superfície e nela reverberam ondas circulares que se propagam. A face lisa do bloco cede lugar a uma imagem – como uma fotografia que se torna objeto. Instaura-se uma superfície por assim dizer orgânica naquele bloco geométrico, por meio de uma imagem que faz menção a um instante congelado no tempo – um vir a ser.
Em algumas obras da série “A memória da matéria” (2012), nas quais aparecem paredes construídas como parte do trabalho, ou ainda prismas deitados no chão – aqui já com uma apropriação do espaço da arquitetura e a participação corpórea do espectador – também em apenas uma das superfícies a geometria cede lugar a várias espécies de plantas – uma simbiose – exuberantes como num jardim. A presença de uma superfície agora literalmente orgânica – viva – e a referência à temporalidade, no tácito vir a ser de toda planta, conversam com a densidade de geometrias desenhadas, das paredes dos trabalhos e também da arquitetura em que se abrigam.
Podemos, portanto, ressaltar que o artista põe em obra um diálogo entre uma geometria consistente, elementos da natureza e uma temporalidade silenciosa de devir.
Para a exposição Túnel de Transições, na Galeria Farol, Juan Parada concebe a instalação Arco vivo (2015). Trata-se da insinuação de um túnel, totalmente permeável, que vai se configurando no espaço por meio da agregação de pequenas peças, como móbiles dispostos de maneira a juntos desenharem um lugar oscilante de passagem.
Conforme adentramos o túnel, o desenho das peças se modifica – uma oval alongada, outra achatada e um círculo – e o espaço entre elas torna-se menor, adensando o conjunto no momento final da passagem, em arco. Ocorre uma transformação da forma em três tempos.
Em trabalhos mais bidimensionais do artista, ocorre algo semelhante (Topografia Sonora): são placas em que o processo de transformação de uma forma em outra configura o desenho do relevo, como se a forma contasse sua própria história enquanto configura a superfície (Topografia Sonora). Acompanhamos com os olhos uma metamorfose em uma sequência que parece fazer sentido. Temos como que um processo no tempo que se torna visível no espaço.
Isso é algo propriamente percebido em uma planta: enquanto se desenvolve, ela vai deixando em seu caule todas as folhas (galhos, espinhos e tudo o mais) que foram nascendo em seu crescimento. Diferentemente do que ocorre com os animais e o ser humano, podemos refazer com os olhos toda a história da planta – o seu devir vai se fixando no espaço.
Em Arco vivo, Juan cria um ambiente em ato, concretiza a imagem de algo que parece estar em processo formativo. Tudo é transição: o túnel, o nosso caminhar e o desenho das peças a direcionar vetores flutuantes no espaço. Outra vez, a clareza de formas essenciais geométricas, a terra, a planta e o vir a ser das coisas são postos em obra. No entanto, agora o todo apenas se insinua: são pequenos módulos escultóricos que se expandem e se concentram com o intuito de formar algo – uma temporalidade no espaço.
Da exuberância das muitas espécies de trabalhos anteriores, agora o mundo vegetal está presente com apenas uma planta. As cerâmicas de terracota são como que rasos contentores para a terra – continentes. E cada uma recebe uma muda de planta suculenta pendente que, no entanto, imprevisivelmente, sai de dentro da terra por um vão dos objetos e se direciona para baixo rumo ao chão. São módulos suspensos feitos de um recipiente, terra e planta – Juan já havia desenhado peças semelhantes em algumas esculturas autônomas e na instalação Teto verde (2015), com louças brancas.
Elemento de foco do olhar, em sua posição inusitada, a planta potencializa uma fragilidade. Mesmo que dentro das espécies esta seja uma bem adaptável a mudanças climáticas, resistente, na maneira como aparece ali, pendente num caule solitário, surgindo debaixo da louça, oscilante no espaço, evidencia-se sua delicada suscetibilidade.
Dos primeiros aparecimentos do mundo vegetal na história da arte está a presença, em finais do século 12, do jardim. O jardim perfeito, onde vivem Madonas e anjos, é o paraíso, palavra de origem persa cujo significado é “espaço rodeado de muros”. Se o espaço do jardim representava um lugar de proteção do mundo aterrorizante da natureza desconhecida, com a pintura de paisagem que nasce no século 15 – e mostra terras enigmáticas, com os italianos; céus e terras longínquos, com os holandeses; naturezas domesticadas ou atemorizantes, pitorescas ou sublimes, com os ingleses; florestas pulsantes, dos germânicos; luzes e sombras coloridas e em movimento, com os impressionistas franceses, para citar alguns – o mundo que amedronta passa a ser conhecido, sobem-se montanhas (lugar da morada de monstros), ultrapassam-se os mares rumo a novos continentes. Com a perspectiva, que tem amplo desenvolvimento junto com a pintura de paisagem, define-se um sujeito que se posta diante de um objeto. Um sujeito que gradativamente se aparta da natureza e por isso pode observá-la como se estivesse diante de uma janela. Com a técnica, pode-se também dominar a natureza.
O jardim é, portanto, para o Marco Polo de Ítalo Calvino, um refúgio, talvez um imaginário espaço da mente em que reina a calma, para esse conquistador que segue sem um instante de pausa a subir um rio verde de crocodilos – e quem não segue?
É também refúgio da multidão, lugar em que podemos avaliar aquilo que estamos vivendo, fazer as contas, contemplar a distância.
Há em Arco vivo uma atmosfera silenciosa e acolhedora como a de um jardim – todas as plantas são boas companheiras. Mas se o que advém da história que segue com a conquista do espaço da perspectiva é assunto nosso, muitos são os artistas que têm trazido em sua arte a urgência de um novo estar do sujeito no mundo.
Um artista da arte povera, Giovanni Anselmo, pega dois blocos de granito, um maior e um muito menor, e os enlaça com um fio de cobre. Entre eles, quase que esmagado, um pé verde de alface: com vida, o volume do vegetal cria um elo entre as rochas, contudo, quando as folhas secam, a tensão do fio diminui, o espaço aumenta, o bloco pequeno despenca e tudo se desfaz (sem título ou Struttura che mangia, 1968). Muitos foram os artistas que trouxeram, nesses anos da década de 1960, todas as coisas existentes como matéria possível para a arte, impossível citar poucos exemplos.
Mas, no âmbito da obra de Juan Parada, vale relembrar a Earth room (1977), de Walter de Maria. Um amplo apartamento, em Manhattan, preenchido com terra a uma altura de 56 centímetros, que só pode ser contemplado por um vão de porta. Assim, toda aquela quantidade de terra dimensiona palpavelmente a geometria da arquitetura de um espaço urbano. Nosso olhar se estende horizontalmente na terra deitada, como num vasto campo. Vemos a distância, não caminhamos sobre ela. Regada periodicamente para mantê-la viva, ali, suspensa na cidade, a terra pulsa possibilidades.
Em Arco vivo, há uma horizontalidade que se evidencia principalmente pela terra no conjunto das peças. Afinal a terra se conforma nos continentes, pequenos aglomerados geométricos tais quais perfeitas sementes – e aqui vale ter em mente todo o pulsar da escultura do século 20 que se concentra na plástica de Brancusi e em suas formas essenciais. Convidados a imergir num movimento virtual, participamos de algo que fixa o impulsionar de um processo de conformação, sem traçar oposições entre geometria e natureza e sim criando uma simbiose em ato de todos os elementos, inclusive conosco.
Afinal, para continuar falando com a voz do autor de As cidades invisíveis – cidades com camadas de memórias, desejos, imaginações, espelhamentos, olhares, símbolos –,
Talvez do mundo só reste um terreno baldio coberto de imundícies e o jardim suspenso do paço imperial do Grande Khan. São as nossas pálpebras que os separam, mas não se sabe qual está dentro e qual está fora.